sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Vocação, disciplina e leitura

    Há uma sedução perigosa na palavra vocação. Ela sugere um chamado quase místico, uma chama que, uma vez acesa, bastaria para iluminar todo o caminho. Mas a experiência humana insiste em nos lembrar de outra verdade: a vocação, quando não encontra disciplina, não floresce — apodrece em frustração. Ter sede não basta. O deserto está cheio de pessoas sedentas que não sobreviveram por não conhecerem o caminho até a água. 
 
    O impulso inicial, seja ele artístico, intelectual ou espiritual, é apenas o primeiro gesto. Ele nasce espontâneo, visceral, muitas vezes belo. No entanto, o impulso não sabe permanecer. Ele aparece e desaparece conforme o humor, o cansaço ou as circunstâncias. Quando confiamos apenas nele, transformamos o dom em refém do acaso. O que poderia ser construção vira espera; o que poderia ser obra vira promessa adiada. 
 
    É nesse ponto que o estudo deixa de ser um fardo e se torna uma forma de fidelidade. Estudar é dizer ao próprio desejo: “eu levo você a sério”. Não se trata de domesticar a vocação até torná-la estéril, mas de oferecer a ela um chão firme. O método não mata a inspiração; ele a protege. A constância não sufoca a criatividade; ela cria o espaço onde a criatividade pode, finalmente, trabalhar sem depender de lampejos raros. 
 
    Criar o hábito da leitura é um gesto fundacional nesse processo. Ler não é apenas consumir palavras, mas aprender a pensar com profundidade, a ouvir outras vozes, a reconhecer limites e possibilidades da própria linguagem. A leitura ensina paciência em um mundo viciado em urgência. Ela treina o olhar para a complexidade e afina a sensibilidade para o detalhe. Quem lê com regularidade aprende, ainda que sem perceber, a permanecer — e permanecer é uma das formas mais silenciosas e poderosas de disciplina. 
 
    A frustração nasce quando há distância demais entre o que se deseja ser e o que se está disposto a praticar diariamente. A disciplina, ao contrário do que muitos temem, não é uma prisão, mas uma ponte. Ela transforma o desejo em hábito, o hábito em caminho, e o caminho em possibilidade real. A vocação, então, deixa de ser um peso não cumprido e passa a ser uma construção viva, feita de pequenas escolhas repetidas. 
 
    No fim, não é a intensidade do chamado que sustenta uma trajetória, mas a capacidade de responder a ele todos os dias, mesmo quando o entusiasmo silencia. A sede aponta a necessidade; o estudo traça o percurso. Sem caminho, a sede vira desespero. Com caminho, ela se transforma em travessia. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

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