terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Antes da pedra, o abismo

    Antes que a mão se erga contra o irmão, há um instante suspenso — e é nele que habita a tragédia de Caim. Não o instante do golpe, mas o da escolha. A angústia de Caim não nasce do ódio puro; nasce do espelho quebrado da comparação, do silêncio de Deus que ele interpreta como rejeição, da ferida aberta entre o que ele é e o que ele gostaria de ser. 
 
    Teologicamente, o drama de Caim não é apenas moral, mas relacional. Deus não o abandona; ao contrário, fala com ele. “O pecado jaz à porta”, diz-lhe, como quem alerta um filho diante de um animal à espreita. Há aqui uma verdade desconfortável: o mal não se impõe, ele se oferece. A tentação não força — ela espera consentimento. Caim ainda é livre. O aviso divino não elimina a angústia, mas a ilumina. Deus não escolhe por Caim; respeita-lhe a responsabilidade. O silêncio que Caim sente não é ausência de Deus, mas a exigência de maturidade. 
 
    Filosoficamente, Caim encarna o sujeito lançado no mundo sem garantias. Ele faz o certo — oferece o fruto de seu trabalho — e, ainda assim, não recebe o reconhecimento que espera. Surge então a pergunta que atravessa séculos: e se o mundo não recompensar o mérito como imaginamos? A angústia nasce quando percebemos que o valor não é distribuído segundo nossas contas. Abel torna-se, para Caim, não apenas um irmão, mas um sinal vivo de sua frustração. O erro trágico está aqui: Caim transforma o problema do sentido em um problema de rivalidade. Em vez de perguntar “quem sou eu?”, ele pergunta “por que ele?”. E nessa troca, perde-se. 
 
    Existencialmente, Caim é profundamente contemporâneo. Ele vive o ressentimento de quem se sente invisível, preterido, não validado. Em nossos dias, isso assume novas formas: números, curtidas, reconhecimento público, sucesso comparativo. Como Caim, muitos de nós oferecemos algo — trabalho, afeto, talento — e, ao não recebermos a resposta esperada, somos tomados por uma fúria silenciosa. A angústia cresce quando deixamos de dialogar com ela. Caim se cala por dentro. Ele não elabora sua dor; ele a desloca. Abel paga o preço. 
 
    O assassinato, então, não é um ato súbito, mas o fim de um processo. A verdadeira morte acontece antes, quando Caim mata a possibilidade de diálogo consigo mesmo. Ao escolher destruir o outro, ele tenta apagar o incômodo de existir sem garantias. Mas o paradoxo se revela cruel: ao matar o irmão, ele não elimina a angústia — ele a eterniza. O sangue clama da terra porque a culpa é uma angústia que não se cala. 
 
    A história de Caim nos confronta com uma pergunta que permanece aberta: o que fazemos quando nos sentimos menos amados, menos vistos, menos escolhidos? Podemos transformar a dor em escuta, ou em violência. Podemos permitir que Deus — ou a consciência, ou o outro — nos interpele, ou podemos fechar o coração e fazer do mundo um inimigo. 
 
    Antes da pedra, há sempre um instante. É ali que ainda somos livres. É ali que nossa humanidade está em jogo. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

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