quinta-feira, 22 de maio de 2025

Entre Deus e o Nada: Gregor Samsa sob o Olhar de Nietzsche e da Teologia

    Franz Kafka inicia A Metamorfose sem piedade: um homem desperta transformado em inseto. Não há aviso, nem pecado, nem milagre. Apenas o corpo que se rebela, a linguagem que falha, e a vida que se esvazia de sentido. Gregor Samsa não é herói, nem pecador, nem mártir clássico. Ele é um espelho: inerte, distorcido e brutalmente humano. 
 
    Sob a lente de Nietzsche, a tragédia de Gregor revela a decadência do espírito moderno. Não há vontade de potência em seu gesto — apenas a submissão. O trabalho, que deveria ser afirmação de força criativa, se reduz a servidão. Gregor é o último homem nietzschiano: pequeno, domesticado, viciado em dever. Vive apenas para pagar as dívidas do pai, sustentar a inércia da família, morrer sem ruído. 
 
    “Torna-te quem tu és” — diz Zaratustra. Mas Gregor jamais ousa sê-lo. 
    Sua metamorfose não é libertação; é castigo. Um castigo sem juiz. 
 
    O que Nietzsche denuncia como moral dos fracos, Kafka encena com uma delicadeza cruel. A família, que dele se alimentava, agora o repele. O pai o ataca com maçãs (símbolos ambíguos de culpa e queda); a irmã, antes cúmplice, vira carcereira. Todos o querem fora de vista, fora da casa, fora da vida. O ressentimento não grita — apenas fecha portas. 
 
    E, no fundo desse absurdo, ressoa uma angústia religiosa. Gregor se torna um cordeiro sacrificial, uma figura crística sem glória, sem salvação. Sua dor não redime ninguém. Ao morrer, não há céu que o acolha, nem Deus que o nomeie. Há apenas o alívio dos vivos, que vão ao campo como se tivessem enterrado um estorvo. 
 
    Aqui, Kafka encarna a teologia do silêncio. Deus não responde. Nem mesmo se esconde — talvez jamais tenha estado lá. Gregor é um sem voz divina, um Cristo sem Pai, um pecador sem culpa. Ele carrega sobre si a falência da promessa: nem justiça, nem ressurreição, nem sentido. 
 
    E, no entanto, há algo de sagrado nesse sofrimento banal. Um quarto escuro, um corpo maldito, um silêncio espesso — Kafka constrói um altar de ruínas, onde a única fé possível é continuar sendo, mesmo sem razão. Gregor não luta, mas também não desaparece. Ele permanece, até o fim, com seu corpo estranho e sua alma humana, esperando — não se sabe o quê. 
 
    Talvez seja isso que assombre: a espera que não leva a lugar algum. 
    O corpo apodrece, o mundo gira, e Deus permanece ausente. 
    Nietzsche proclamou a morte de Deus; Kafka escreveu o corpo. 
 
    Gregor Samsa não quer ser inseto. Mas tampouco sabe ser homem. E, nesse abismo entre a carne e o espírito, entre a vontade e o dever, entre a cruz e o nada, Kafka deixa suspensa a pergunta essencial: O que resta do humano quando se perde o sentido e ainda se continua vivo? 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

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