sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Saiba que tens defeitos

    Conheça bem os seus defeitos. Essa é, talvez, uma das formas mais sinceras de começar a caminhar em direção a si mesmo. Não para se diminuir, nem para carregar a alma com pesos desnecessários, mas para enxergar, com lucidez, aquilo que ainda nos falta — e aquilo que, justamente por faltar, nos impulsiona. 
 
    Ninguém é completo. Essa verdade, longe de ser uma sentença de limitação, é o que nos mantém vivos por dentro. Somos feitos de buracos, lacunas, pequenas rachaduras que deixam passar tanto a luz quanto a sombra. E é nesse jogo de presenças e ausências que o humano respira. O que nos falta não é um defeito em si; é o espaço onde o aperfeiçoamento pode pousar. 
 
    Mas conhecer os próprios defeitos exige coragem. É mais fácil fugir deles, construir máscaras, inventar desculpas, culpar o tempo, a vida ou o outro. Difícil é olhar para si com a honestidade de quem sabe que o caminho da mudança começa sempre pelo reconhecimento da própria incompletude. Defeitos não são sentenças eternas; são pontes. Servem para nos mostrar por onde seguir, onde ajustar o passo, onde respirar mais fundo antes de avançar. 
 
    E ainda assim, nunca saia do caminho do aperfeiçoamento. Não porque exista uma versão perfeita esperando por nós no futuro — não existe. Mas porque o ato de melhorar é, por si só, uma forma de amor próprio. É um compromisso silencioso de não abandonar aquilo que podemos ser. Melhorar não significa se tornar impecável; significa se tornar mais inteiro. 
 
    No fim, aperfeiçoar-se é um movimento contínuo. Um ir e voltar, cair e levantar, perceber e corrigir. É aceitar que sempre vai faltar alguma coisa — e, paradoxalmente, é justamente isso que nos faz seguir adiante. A incompletude não é uma falha da vida; é o convite permanente para nos tornarmos algo mais próximo daquilo que desejamos ser. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A dificuldade de dominar os próprios desejos

    A dificuldade de dominar os próprios desejos talvez seja uma das provas mais íntimas da condição humana. Desejar é um movimento natural, quase instintivo; é o impulso que nos projeta para fora de nós mesmos, que nos faz buscar, querer, imaginar, sonhar. Mas, justamente por nascer tão profundamente dentro de nós, o desejo também carrega uma força que nem sempre conseguimos medir. 
 
    Há uma fronteira delicada entre ter um desejo e ser tomado por ele. Quando o desejo nos atravessa, ele acende em nós uma espécie de vertigem: uma mistura de expectativa, falta e urgência. E é aí que surge o desafio — porque o desejo não obedece facilmente à razão. Ele não se submete ao relógio, às circunstâncias, ao que seria prudente. Ele tem sua própria linguagem, seu próprio tempo, e exige ser reconhecido. 
 
    Dominar o desejo, no entanto, não significa silenciá-lo. Reprimir o que sentimos costuma gerar sombras ainda mais profundas. O verdadeiro domínio é compreender: olhar de frente o que queremos, interrogar suas raízes, suas consequências, suas máscaras. É perguntar a si mesmo: de onde vem essa vontade? O que ela revela sobre mim? O que ela pede que eu enfrente? Essa honestidade exige coragem — porque, às vezes, o desejo expõe nossas vulnerabilidades mais escondidas, nossa carência de afeto, de reconhecimento, de liberdade, de sentido. 
 
    Há também o risco do excesso. Quando deixamos que o desejo se torne tirano, perdemos a capacidade de escolher. Passamos a reagir, não a decidir. Confundimos intensidade com verdade, urgência com necessidade. O desejo, então, deixa de ser uma chama e se torna incêndio. 
 
    Por isso, a dificuldade de dominá-lo não é uma fraqueza, mas um processo de aprendizado contínuo. Dominar o desejo é aprender a conviver com ele — compreendê-lo sem ser arrastado, acolhê-lo sem ser ferido, permiti-lo sem permitir que ele nos devore. É transformar essa força interior em caminho, não em abismo. 
 
    No fundo, nossa vida é feita dessa dança: a razão que nos orienta, o desejo que nos move. E talvez maturidade seja justamente encontrar um ritmo possível entre ambos — onde o desejo não é negado, mas também não reina sozinho. Onde o querer se torna escolha, e não destino. Onde, ao invés de sermos escravos do que sentimos, nos tornamos artesãos de nós mesmos. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A beleza transitória

    A beleza transitória da matéria passa depressa. Ela cintila, seduz, ocupa o olhar por um instante — e então se esvai. Como as flores que desabrocham ao amanhecer e, antes do pôr do sol, já iniciam seu retorno silencioso à terra, a beleza externa é um acontecimento breve, quase um sussurro no tempo. Ela existe para ser contemplada, não para ser possuída. 
 
    A matéria, quando bela, ensina sobre o instante. Seu perfume, sua forma e seu brilho são convites para a presença, jamais garantias de permanência. Quem se apega apenas ao que é visível acaba preso à frustração inevitável do desaparecimento. O tempo, paciente e imparcial, dissolve tudo o que foi moldado apenas para agradar aos sentidos. 
 
    Por isso, convém aprender a sondar a beleza interna das pessoas com quem convivemos. Essa beleza não se revela de imediato. Ela não se impõe ao olhar, nem busca aplauso. Mora nos gestos repetidos, na ética silenciosa, na capacidade de sustentar o outro quando não há recompensa visível. É uma beleza que não precisa ser notada para existir. 
 
    As pedras, embora ásperas e muitas vezes ignoradas, atravessam séculos realizando suas tarefas: sustentam pontes, marcam caminhos, erguem cidades, guardam memórias. Não encantam pelo perfume, mas pela fidelidade ao seu propósito. Permanecem. Resistentes ao tempo, tornam-se testemunhas do que passa. 
 
    Assim também são certas pessoas. Podem não brilhar aos olhos apressados, mas sustentam lares, histórias e afetos com a mesma firmeza das rochas antigas. Sua beleza está na constância, na responsabilidade assumida, na coragem de permanecer quando tudo convida à fuga. 
 
    Talvez a maturidade do olhar esteja em reconhecer que a flor ensina sobre a delicadeza do agora, enquanto a pedra ensina sobre o valor da permanência. Uma não anula a outra, mas a vida exige discernimento para não confundir encanto com essência. No fim, é a beleza que resiste — mesmo sem perfume — que sustenta o mundo. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Quando se perde a direção

    A perda de direção não é apenas um fenômeno prático — ela é, sobretudo, um sintoma ontológico. Quando o ser humano já não sabe para onde caminha, não se trata apenas de ausência de metas, mas de um enfraquecimento do eixo interior que orienta escolhas, valores e sentido. A direção nasce de uma relação profunda entre a razão e aquilo que a sustenta: memória, tradição, responsabilidade e vínculo. Quando esses elementos se dissolvem, a alma racional perde seu papel de timoneira e passa a vagar ao sabor de impulsos fragmentados. 
 
    A superficialidade surge, então, como defesa e consequência. Incapaz de sustentar o peso da reflexão profunda, o indivíduo passa a deslizar pela superfície das experiências. Tudo é vivido de forma breve, substituível e acelerada. Não há tempo para elaborar perdas, nem silêncio para compreender desejos. A razão, que deveria mediar o mundo interior e o exterior, passa a servir apenas à utilidade imediata, ao cálculo rápido, ao consumo de sensações. O pensamento deixa de perguntar “por quê?” e se contenta com o “para quê agora?”. 
 
    Nesse processo, a vida enraizada — aquela que se ancora em lugar, em história, em relações duradouras — é lentamente abandonada. Enraizar-se exige permanência, compromisso e, sobretudo, aceitação dos limites. A vida sem raízes promete liberdade absoluta, mas entrega dispersão. Sem raízes, o sujeito não se nutre; apenas se move. E o movimento constante, longe de ser vitalidade, revela uma fuga: fugir do confronto com a própria interioridade. 
 
    O desequilíbrio da alma racional manifesta-se, assim, como desarmonia entre pensamento, desejo e ação. A razão já não ordena, apenas justifica. Ela se torna cúmplice da superficialidade, criando narrativas rápidas para escolhas vazias. O resultado é uma existência ruidosa e, paradoxalmente, vazia — cheia de estímulos, mas pobre de sentido. 
 
    Recuperar a direção implica um retorno às profundezas: reaprender a demorar-se, a ouvir, a sustentar perguntas sem respostas imediatas. Significa reatar o vínculo com aquilo que é durável, mesmo quando exige esforço. A alma racional só encontra equilíbrio quando volta a exercer sua função mais alta: não dominar o mundo, mas dar-lhe sentido. E isso só é possível quando a vida, novamente, cria raízes. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A ação do tempo é infalível

    O tempo age sem alarde. Não anuncia seus movimentos nem pede licença para passar; simplesmente passa. Em sua marcha silenciosa, vai desfazendo os nós que a dor insiste em apertar, não por negação do sofrimento, mas por transformação. Aquilo que hoje fere, amanhã se torna cicatriz — e a cicatriz não dói, apenas lembra que houve um ferimento e que ele foi atravessado. 
 
    Há uma sabedoria discreta na ação do tempo. Ele não nos empurra com violência em direção ao que precisamos ser; antes, nos conduz com a paciência de quem conhece o ritmo exato das coisas. Assim como a brisa leve não elimina o sol do verão, mas torna seu ardor suportável, o tempo não apaga as perdas nem corrige de imediato os erros do passado. Ele nos ensina a habitá-los de outra forma, a respirar mesmo sob o calor das lembranças. 
 
    A tristeza, quando chega, costuma nos convencer de que o momento presente é definitivo, de que o estado da alma será eterno. Mas o tempo desmente essa ilusão. Ele nos lembra que tudo o que é humano é transitório: a dor, o medo, a angústia, o desamparo. Permanecer não é o mesmo que durar para sempre. Mesmo os sentimentos mais densos se dissolvem, pouco a pouco, quando atravessados pela continuidade dos dias. 
 
    Não se deixar abater pela tristeza não significa rejeitá-la ou fingir força. Significa confiar que ela não é o fim do caminho, apenas uma de suas curvas. O tempo, com sua fidelidade silenciosa, segue trabalhando enquanto vivemos, enquanto sofremos, enquanto esperamos. E quando menos esperamos, percebemos que algo se suavizou: o peso diminuiu, o fôlego voltou, a vida encontrou uma nova forma de seguir. 
 
    Confiar no tempo é, no fundo, um ato de esperança serena. É aceitar que há processos que não dependem da pressa, mas da permanência. E que, mesmo quando tudo parece ardente demais, há sempre uma brisa em movimento — invisível, constante, infalível — nos conduzindo adiante. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 7 de dezembro de 2025

A voz que só o silêncio revela

    Se acreditamos que Deus nos guia sempre, não podemos buscar Sua presença apenas nos momentos de urgência, dor ou desespero. A verdadeira escuta nasce antes, no intervalo entre um pensamento e outro, naquele espaço íntimo onde o mundo se aquieta e a alma se abre. É no silêncio que a voz divina encontra passagem — não porque Deus fale baixo, mas porque nós falamos alto demais. 
 
    Meditar silenciosamente é, portanto, um gesto de retorno. É o reconhecimento de que há um eixo sagrado que sustenta nossas incertezas, um sopro que nos conduz mesmo quando não percebemos. Quando nos recolhemos, permitimos que a superfície turbulenta dos medos se acalme, e então a direção divina, sempre presente, torna-se perceptível como uma luz que brota por dentro. 
 
    Jamais abandoná-Lo não significa viver sem falhas, mas permanecer em constante intenção de presença. A fidelidade a Deus se revela nos pequenos movimentos: na escuta atenta, na decisão ponderada, no ato de agradecer mesmo sem compreender. Quem confia em Deus não corre atrás de respostas imediatas; aprende a acolher, a discernir, a caminhar com o coração atento. 
 
    No silêncio, descobrimos que Deus nunca se ausentou. Nós é que precisamos, às vezes, diminuir o ruído interno para perceber que Ele continua a nos guiar — com paciência, com suavidade, com amor. Meditar é abrir espaço para esse encontro. E seguir com Ele é a mais profunda forma de liberdade. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 6 de dezembro de 2025

Sobre a ilusão de que faríamos melhor

    É muito fácil imaginar que, se estivéssemos no lugar de quem ocupa cargos de destaque na política ou na administração pública, agiríamos com mais justiça, mais coragem, mais sensatez. É quase um instinto humano: observar de fora, julgar de longe, apontar o que está errado e preencher mentalmente as lacunas com a certeza confortável de que nós faríamos melhor. 
 
    Mas essa certeza é uma ilusão benevolente — um espelho que nos mostra uma versão idealizada de nós mesmos. 
 
    A verdade é que não sabemos. Não sabemos o peso real das decisões que parecem simples vistas de longe, mas que, de perto, envolvem vidas, interesses conflitantes, pressões invisíveis e consequências que se desdobram como fios de um tecido complicado. Também não conhecemos as engrenagens internas, as limitações, os dilemas éticos, os acordos necessários e as responsabilidades que ninguém vê, mas que recaem como uma pedra sobre quem assina seu nome em documentos que reverberam sobre um país inteiro. 
 
    Dizer “se eu estivesse lá, faria melhor” é um gesto humano, compreensível, mas carregado de presunção. E se, no lugar deles, fizéssemos pior? E se, diante do mesmo cenário, das mesmas pressões, dos mesmos riscos, também nos curvássemos ou errássemos? E se a fragilidade que julgamos neles também morasse silenciosa em nós? 
 
    Julgar é rápido. Compreender é lento. E governar — governar de verdade — é atravessar um terreno que nenhum observador externo consegue medir completamente. 
 
    Isso não significa absolver erros, ignorar abusos ou aceitar injustiças. Significa reconhecer que o exercício do poder é um espaço onde as certezas se desfazem e onde a soberba de quem observa pode ser tão enganosa quanto a falha de quem age. 
 
    Antes de condenar, talvez devêssemos lembrar: o ser humano é sempre mais complexo que o papel que ocupa. E a humildade, mais do que a crítica, é o que nos permite enxergar com clareza a fragilidade compartilhada que nos une — governantes e governados — no mesmo território incerto do ser humano. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A verdadeira liberdade

    A verdadeira liberdade não é filha da calmaria — é filha do caos. Há uma ilusão confortável que nos faz acreditar que somos livres quando tudo está no lugar, quando a rotina se deixa domar e o mundo responde de forma previsível aos nossos gestos. Mas essa liberdade é uma sombra, um reflexo que desaparece ao primeiro vento contrário. O que realmente nos liberta não é a ausência de desafios, e sim a disciplina silenciosa que aprendemos a cultivar dentro de nós quando o chão treme. 
 
    É no imprevisível que revelamos o tamanho da nossa alma. Quando nada é garantido, quando as certezas caem uma a uma como folhas secas, resta apenas aquilo que conseguimos sustentar internamente: o eixo, o coração firme, a lucidez que não se vende ao desespero. A liberdade nasce exatamente nesse ponto — quando descobrimos que não precisamos controlar o mundo para não sermos destruídos por ele. 
 
    Ser livre, nesse sentido, não é fazer o que se quer, mas manter-se inteiro quando tudo ao redor exige ruptura. É escolher o rumo mesmo quando a névoa esconde os caminhos. É dizer “eu permaneço” quando tudo parece convidar ao abandono de si. A disciplina da alma não é uma rigidez; é um enraizamento. É o desenvolvimento de uma força que não precisa de garantias para existir. 
 
    Essa liberdade é uma chama que se acende no instante em que o inesperado nos visita. E, paradoxalmente, só se sustenta porque é íntima. Ela não depende de circunstâncias, nem de aplausos, nem de vitórias. Ela depende de um acordo profundo com a própria consciência: o pacto de não fugir de si mesmo, mesmo quando o mundo ameaça ruir. 
 
    Assim, o imprevisível deixa de ser um inimigo. Torna-se um mestre. E a alma, disciplinada pela experiência do incerto, aprende a caminhar com mais honestidade, com mais profundidade, com mais presença. A verdadeira liberdade, então, não é encontrada; é construída. Tijolo por tijolo, escolha por escolha, silêncio por silêncio. 
 
    E quando finalmente floresce, ela não pede que tudo fique calmo. Apenas exige que sejamos capazes de permanecer. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Eleve o coração em oração

    Há um tipo de oração que nasce da memória e outra que nasce da alma. A primeira segue caminhos já trilhados: palavras repetidas, expressões polidas pelo tempo, frases que herdamos de outros. A segunda, porém, brota como água fresca de um poço íntimo — inesperada, verdadeira, viva. Ela não se preocupa com a beleza da frase, mas com a honestidade do sentimento. 
 
    Quando você conversa com um amigo querido, não pensa no que deve dizer para impressioná-lo. Você simplesmente fala. Fala com erros, pausas, risos, silêncios, e ainda assim tudo é compreendido — porque a amizade reconhece a intenção antes da forma. O mesmo acontece com o sagrado: não há necessidade de discursos perfeitos, apenas de um coração desperto. 
 
    Recitar uma fórmula pode aquecer por um instante, mas é como acender um fósforo: breve, previsível. Já a palavra espontânea é fogo de lenha: crepita, dança, ilumina o que você nem sabia que guardava dentro de si. É nesse terreno indomado que a oração se torna encontro, não ritual; diálogo, não obrigação. 
 
    Quando você se permite falar com Deus como quem fala com alguém profundamente amado, algo muda. A distância se encurta. A formalidade cai. Surge uma sinceridade que talvez estivesse adormecida. Você fala da sua alegria desajeitada, da sua angústia sem nome, do medo que mal sabe explicar. E descobre que isso basta. 
 
    Porque o que sustenta a oração não é a perfeição da frase — é a verdade do coração. E o coração só fala de verdade quando não é vigiado pelas expectativas dos outros. 
 
    Por isso, eleve o coração, não as fórmulas. Deixe que suas palavras saiam como saem as confissões aos amigos: livres, imperfeitas, profundamente humanas. Ali, nesse terreno humilde e espontâneo, mora o que há de mais sagrado. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Seja dono de si mesmo

    A serenidade não é apenas um estado de calma: é uma forma de sabedoria. Quando alguém aconselha “não perca a sua serenidade”, não está pedindo para você ser passivo ou indiferente, mas para que não entregue o seu eixo interior ao acaso das emoções que vêm de fora. 
 
    A raiva, o rancor e a mágoa têm uma força quase sedutora. Eles dão a impressão de movimento, de ação, de resposta. Mas, na verdade, nos consomem por dentro. A raiva acelera o corpo como um fogo mal contido; o rancor permanece como brasas enterradas, aquecendo silenciosamente o fígado, que na cultura simbólica é o órgão da ira acumulada; a mágoa, por sua vez, é um veneno lento, que se infiltra no coração, tornando nossos sentimentos turvos, desconfiados, cansados. 
 
    Manter a serenidade, então, é um ato de autocuidado profundo. É olhar para a avalanche de emoções possíveis e escolher não ser arrastado por elas. Dominar as reações emotivas não significa reprimi-las — significa entendê-las. A emoção que é compreendida se dissolve; a que é reprimida fermenta. 
 
    A serenidade nasce quando você reconhece que nem tudo merece resposta, que nem toda provocação é sobre você e que nem todo conflito precisa ser acolhido. Ela surge quando você aprende a respirar antes de reagir, a observar antes de falar, a sentir sem ser dominado. É a capacidade de dizer a si mesmo: “Eu escolho a paz, não por fraqueza, mas por força.” 
 
    E, no fim, essa serenidade não protege apenas o corpo, mas também o espírito. É ela que mantém a lucidez nos momentos difíceis, que sustenta o coração nas perdas, que permite seguir adiante sem carregar o peso das tempestades alheias. 
 
    Ser sereno é, no fundo, exercer o mais alto grau de liberdade: a liberdade de não se tornar refém das emoções que passam — e deixar que a vida flua com mais leveza, mais saúde e mais verdade. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

O que significa ser grato

    Há uma compreensão equivocada — quase uma crença moderna — de que a gratidão é uma forma de fuga, um otimismo açucarado que tenta borrar as sombras da realidade. Mas isso é justamente o contrário do que ela é. A gratidão verdadeira não nasce para abafar a dor; ela nasce dentro da dor, como um músculo discreto que se fortalece quando tudo parece frágil. 
 
    Ser grato não significa negar o peso que se carrega. As dificuldades continuam sendo dificuldades; as perdas continuam sendo perdas; os medos continuam sendo medos. A gratidão apenas recusa que eles sejam o único horizonte possível. Ela não apaga o que dói — apenas se recusa a deixar que a dor defina todo o cenário. 
 
    Quando olhamos só para o peso, ele domina o campo de visão e parece assumir proporções maiores do que realmente tem. É como caminhar à noite com uma lanterna apontada apenas para o chão: enxergamos as pedras, os buracos, as irregularidades do caminho, e esquecemos que acima de nós existe um céu imenso, e ao redor de nós há paisagens inteiras. A gratidão é esse gesto simples — porém radical — de levantar a lanterna um pouco mais. 
 
    De repente, percebemos que, apesar do peso, ainda estamos de pé. Que apesar das quedas, há mãos que nos levantaram. Que apesar do desgaste, há algo — um propósito, um afeto, um fio de esperança — que continua nos movendo. Gratidão não é luz que elimina as trevas: é luz que revela o que existe além delas. 
 
    Ela amplia o campo de visão ao lembrar que a vida não é feita só dos momentos difíceis, mas também dos sustentáculos invisíveis que nos mantêm — a força que não sabíamos que tínhamos, a coragem que brota quando menos esperamos, a presença silenciosa de quem caminha conosco, mesmo que não resolva nada. Gratidão é o reconhecimento desses pilares escondidos. 
 
    E quando enxergamos o que sustenta, o peso não desaparece — mas muda de proporção. Torna-se carregável. Torna-se parte do caminho, e não o caminho inteiro. 
 
    No fim, a gratidão nos devolve a perspectiva: somos maiores que o que nos fere, e há algo em nós — ou ao nosso redor — que insiste em nos nutrir. É isso que permite continuar. É isso que transforma o fardo em travessia. É isso que, mesmo em meio à escuridão, ilumina um pouco mais o passo seguinte. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Viver enquanto se está vivo

    A vida é um intervalo breve entre dois silêncios. Passamos boa parte dela acreditando que o amanhã sempre estará ali, fiel, paciente, pronto para nos receber. Mas a verdade é que o tempo nunca prometeu estabilidade; ele apenas flui, indiferente aos nossos desejos. A brevidade da vida se revela justamente quando começamos a entender o valor do que já passou. Só então percebemos que cada manhã foi única, cada gesto carregava um sentido invisível, e cada pessoa deixava em nós alguma marca – leve ou profunda. 
 
    A velhice, muitas vezes temida, é na verdade uma espécie de clareira na floresta dos dias. Depois de tanto caminhar, ela nos oferece a chance de olhar para trás e enxergar o caminho percorrido. Não com arrependimento, mas com a serenidade de quem compreende que tudo teve seu tempo, seu peso e sua beleza particular. A realidade da velhice é a constatação de que o corpo se cansa, mas a alma amadurece; que os passos ficam curtos, porém o olhar se expande; que as urgências diminuem, enquanto os significados aumentam. 
 
    E então surgem as lembranças — essas pequenas faíscas que reacendem a luz do vivido. São detalhes cotidianos que, ao serem revisitados, ganham um brilho inesperado. Um café preparado com cuidado, uma risada ouvida no quintal, um cheiro de fruta madura na feira, o som de alguém chamando o nosso nome… Tudo isso retorna como fragmentos de um mosaico que só nós conhecemos. Lembranças são o que resta quando a velocidade da juventude se esvai; são o arquivo secreto onde guardamos o que fomos, o que amamos e até o que perdemos. 
 
    Quando a vida parece curta demais, é pelas lembranças que ela se estende. Elas nos permitem revivê-la não como ela realmente foi, mas como a sentimos. E nisso há verdade. 
 
    No fim, a brevidade não é um castigo, mas um convite: viver enquanto se está vivo. Amar com mais presença. Olhar com mais atenção. Agradecer mais, reclamar menos. A velhice não é um ponto final, mas um capítulo em que aprendemos a ler o mundo com delicadeza, aceitando a fragilidade como parte de existir. 
 
    E assim seguimos — entre o que fomos e o que restamos sendo — colecionando memórias e descobrindo que, mesmo quando o corpo desacelera, o espírito ainda sabe dançar no ritmo silencioso do tempo. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense